Norops meridionalis

Texto e imagem por Bruno F. Fiorillo

Assim como outras espécies do gênero Norops e seus parentes próximos (gêneros Anolis e Dactyloa), o lagarto bandeira (Norops meridionalis), apresenta uma estrutura que lhe dá o nome e que o faz notável, a barbela.

Esta espécie de lagarto bandeira atinge em média 45 mm (do rostro à base da cauda) e apresenta coloração marrom amarelada com machas creme. Apesar de ser conhecido que a espécie muda regularmente a coloração de sua pele, os fatores que influenciam estas mudanças ainda não desconhecidos. Em outras espécies, a mudança de cor está sujeita ao controle hormonal e é desencadeada por interações sociais ou estresse (encontros com predadores, por exemplo).

A barbela é a mais icônica estrutura morfológica deste grupo de lagartos (anoles). Ela está localizada sob a garganta, podendo se estender até abaixo da barriga. Na maior parte do tempo, se mantém retraída e quase não é visível. No entanto, quando a musculatura associada ao osso hioide se contrai, ela funciona como uma alavanca que desenrola a barbela, fazendo-a levantar-se como uma bandeira colorida. Tal sinalização (comportamento de “hastear bandeira”), é usado pelos machos em diversos contextos, como no cortejo às fêmeas ou mesmo para advertir outros machos da posse de um território.

Assim como outros anoles, N. meridionalis adota uma estratégia de forrageio do tipo “senta-e-espera”, o que quer dizer que essa espécie despende relativamente pouca energia em busca de alimento, permanecendo imóvel boa parte do tempo até que presas cruzem seu caminho. O estudo que mais explorou a dieta da espécie até hoje descreve que esta é composta principalmente de invertebrados das ordens Hymenoptera (família Formicidae, e.g. formigas), Coleoptera (e.g. besouros), Isoptera (e.g. cupins), Aranae (e.g. aranhas) e Orthoptera (e.g. grilos). O mesmo estudo demonstra que a proporção de cada uma dessas ordens na dieta de N. meridionalis varia de acordo com o sexo e estágio da vida dos indivíduos.

Surpreendentemente, presas grandes (e.g. grilos e gafanhotos) são consumidas mais frequentemente por lagartos jovens, o que supostamente estaria relacionado às taxas de crescimento e metabolismo maiores nesses indivíduos. Fêmeas apresentam uma variabilidade alimentar ligeiramente maior que os machos e as presas mais consumidas são os cupins, enquanto os machos consomem mais formigas.

Machos e fêmeas diferem quanto ao formato do corpo, sendo que machos possuem cauda, metacarpo e o quarto da pata dianteira mais longos. Isto pode estar relacionado à seleção sexual dos machos, que quando procuram por alimento, se mantém frequentemente com o tronco elevado e os membros dianteiros esticados. Realizando esta postura, os machos se mantêm atentos para predadores e executam displays sexuais quando necessário. O alongamento do dedo e da cauda também permite maior estabilidade na corrida e fuga de predadores. Faz sentido que esta característica seja pronunciada nos machos uma vez que em diversas espécies de anoles, eles ocupam território maiores do que as fêmeas e assim estariam mais expostos aos riscos de predação. Além disso, é comum que em répteis da ordem Squamata (Anfisbenas, lagartos e serpentes) os machos apresentem caudas maiores, já que esta aloja o orgão reprodutor masculino, também conhecido como hemipênis.

As fêmeas atingem a maturidade sexual com cerca de 40 mm de comprimento (da ponta do focinho à base da cauda) e botam de um a três ovos (o que aparentemente não está relacionado ao tamanho das fêmeas). Embora haja certa intensificação da atividade reprodutiva durante o início da estação chuvosa (que geralmente ocorre de outubro a março) a reprodução da espécie parece ocorrer continuamente ao longo do ano, não havendo sazonalidade. Isto pode estar ligado à adaptações fisiológicas deste e outros lagartos anoles a períodos de seca.

A espécie nominalmente conhecida como N. meridionalis é encontrada apenas no Cerrado (endêmica), é abundante em áreas elevadas de topo de chapada, em paisagens abertas, com densa cobertura de gramíneas (Campo Limpo, Campo Sujo, Campo Cerrado) e rara ou ausente em áreas de depressões interplanálticas, áreas de solo arenoso e em hábitats florestais.

Um estudo recente sugere que N. meridionalis é na verdade um complexo de pelo menos cinco espécies crípticas (diferenciáveis apenas geneticamente) que podem ter se diversificado devido a:

  • Conservação de nicho climático: as populações ancestrais de N. meridionalis já estavam adaptadas a ambientes abertos de clima predominantemente seco e foram incapazes de se adaptar às novas condições climáticas impostas por novos ambientes (áreas úmidas e florestais) que teriam surgido após o soerguimento do Platô brasileiro (onde se situa atualmente a maior parte do Cerrado). Isto impediu que houvesse cruzamento entre populações (fluxo gênico), levando à divergência e especiação.
  • Compartimentalização do Cerrado: estima-se que há cerca de 15 milhões de anos, os lagartos Anoles já ocupavam a América do Sul. Durante o Mioceno Médio (entre 16 e 11 milhões de anos atrás) ocorreu o soerguimento do Platô Brasileiro. Este fenômeno levou à separação de áreas com predomínio de vegetação aberta e clima semiárido intercaladas por baixadas dominadas por florestas úmidas. Esta fragmentação do que hoje é conhecido como Cerrado supostamente levou à interrupção do fluxo gênico entre as populações de N. meridionalis.

Interessantemente, outro estudo realizado no estado de São Paulo, onde os remanescentes do Cerrado são escassos, revelou uma população de N. meridionalis que diverge ligeiramente das demais em termos de uso de hábitat. A população encontrada na Estação Ecológica de Santa Bárbara (município de Águas de Santa Bárbara) também não ocupa ambientes florestais, mas é fortemente associada à vegetação de cerrado típico, um ambiente que apesar de aberto, tem a vegetação bem mais densa do que os ambientes mais comumente relatados para a espécie (Campo Limpo, Campo Sujo, Campo Cerrado). Os mesmos autores que estudaram a estrutura filogeográfica de N. meridionalis, descrita nos parágrafos anteriores não incluíram espécimes do estado de São Paulo em seu estudo e não se sabe ao certo se esta população é realmente N. meridionalis ou uma nova espécie (ainda não descrita), já considerada ameaçada.

Glossário

  1. Hemipênis: órgão copulador dividido dos répteis Squamata.
  2. Nicho climático: condições de temperatura e precipitação do local onde uma espécie ocorre.
  3. Metacarpo: parte do esqueleto da mão ou pata dianteira.
  4. Osso hioide: pequeno osso em forma de ferradura situado na parte anterior e média do pescoço, entre a base da língua e a laringe.
  5. Sazonal: concentração de um dado evento em uma determinada época do ano (ex. verão, inverno)

Revisão do texto por

M.ScJoão Paulo dos Santos Vieira de Alencar. E-mail: joaopaulo.valencar@usp.br CL
Instituto de Biociências, Departamento de Ecologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil.

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