Texto por Bruno F. Fiorillo
A história natural é a área da ciência que se preocupa com o que os organismos fazem em seus respectivos ambientes, e isso inclui as interações entre eles. Ela representa nada menos que a matéria prima da construção do conhecimento. Sem informações primárias sobre as espécies seria praticamente impossível que estudos mais teóricos e/ou a elaboração de planos de conservação fossem realizados.
No meio da herpetologia é muito comum a publicação de diversos relatos envolvendo a história natural de suas espécies. Esses relatos, por sua vez, quando acumulados podem ajudar a solucionar grandes quebra-cabeças biológicos. Serpentes apresentam uma diversidade quase imensurável de registros de defesa, alimentação, reprodução e comportamentos gerais. O conhecimento acerca desses assuntos fornece base para a discussão de diversos aspectos ecológicos e evolutivos do grupo.
Répteis, assim como outros vertebrados, são comumente enquadrados em dois tipos de estratégia de forrageamento (busca por alimento): “senta-espera” (SE) e “forrageamento ativo” (AT). O comportamento SE é adotado por predadores sedentários, ou seja, que optam por permanecer parados em posição de emboscada até que suas presas passem por eles, enquanto em AT, os predadores passam a maior parte de seu tempo se movimentando em busca de suas presas.
Algumas espécies de serpentes sedentárias e, portanto, predadores do tipo SE, utilizam de certos artifícios que maximizam seu número de oportunidades de predação enquanto aguardam por suas presas.
Esses artfícios, frequentemente chamados de “engodo”, visam enganar a presa e assim atraí-las para o mais provável fim de sua vida. O exemplo mais emblemático de engodo entre as serpentes é o engodo caudal. Este é um coportamento geralmente praticado por jovens, que contorcem lentamente a ponta da cauda (geralmente de coloração conspícua, pálida), visando enganar a presa. A presa (anfíbios, lagartos ou outros consumidores de pequenas presas) é atraída pelo almoço grátis e, em parte dos casos, consumida pelo executor do comportamento. Um outro tipo de engodo, já bem menos conhecido, é o engodo lingual, que aparentemente não é tão restrito a serpentes jovens. Embora exista um número razoável de registros do comportamento entre as serpentes, no Brasil, ele é muito pouco documentado.
Entre os poucos estudos que abordaram a história natural da espécie de serpente Mesotes strigatus, aquele publicado por Mario da Rosa et al. (2020), não só traz novas informações relativas à história natural da espécie (uso de hábitat, atividade e forrageio) como também resultados contrastantes ao último estudo publicado sobre a espécie (Bernarde et al. 2000). Durante sua amostragem na Serra do Caverá, uma área localizada na ecoregião de Savana Uruguaia, no estado do Rio Grande do Sul, Mario da Rosa e colaboradores se depararam com uma população de M. strigatus que apresentava muitos aspectos diferentes do esperado.

Os indivíduos da Serra do Caverá se enquadravam claramente na categoria de forrageadores SE, eram encontrados ativos primariamente sobre a vegetação ripária e se alimentavam exclusivamente de peixes, enquanto aqueles encontrado no Parque Estadual Mata dos Godoy (estado do Paraná), se alimentavam de anuros e eram encontrados em atividade em diversos tipos de substrato (desde o solo e corpos d’água até a vegetação).
Mario da Rosa et al (2020), baseados na informação fornecida por estudos taxonômicos, argumentam que talvez a população do Caverá na verdade possa representar uma nova espécie. Além disso, a população também da Serra do Caverá é bem diferente de outras espécies que o realizam, o que pode estar associado com diversas peculiaridades morfológicas (ex. tamanho) e comportamentais (embora apresente grandes olhos, traço geralmente associados à atividade diurna em serpentes, a espécie apresenta atividade noturna) de T. strigatus.

Podemos dizer que as serpentes são realmente dissimuladas?
De fato, o engodo caudal sempre foi tido como uma tática que visa enganar a presa. Por outro lado, os mecanismos de utilização da língua por serpentes, de forma distinta do simples dardejar quimiorreceptor (i.e., protrusões linguais prolongadas), demoraram um pouco mais para serem melhor compreendidos. Ao observar protrusões linguais prolongadas em serpentes do gênero Oxybelis, Keiser (1975) propôs duas hipóteses para explicar tal comportamento. Uma delas afirmava que o comportamento na verdade não serviria para enganar presas com se pensava no passado, e sim para maximizar a “leitura do ambiente” pela serpente durante o forrageio (partículas capturadas através das pontas da língua retornam ao sistema olfativo levando informações químicas do ambiente). A outra, argumentava que esse comportamento serviria realmente para confundir/distrair a presa, desviando sua atenção da serpente em si. No entanto, o comportamento observado em M. strigatus não se enquadra em nenhuma dessas últimas hipóteses, simplesmente porque para ambas dependem de uma premissa muito importante: as hipóteses de Keiser apresentan-se sob a premissa de que a língua permanece imóvel durante a protrusão prolongada. Assim, as serpentes permaneceriam indetectáveis enquanto ainda coletam informações precisas sobre a localização da presa (primeira hipótese) ou permaneceriam indetectáveis ao se aproximarem de presas já detectadas (segunda hipótese). Ao contrário, quando protrusões prolongadas foram observadas em M. strigatus, elas foram acompanhadas por vibrações frenéticas de ambas as extremidades da língua, com leves movimentos do corpo lingual, o que tende a chamar a atenção de presas potenciais. Além disso, a língua de M. strigatus é bicolorida (preta e branca nas pontas). Isso faz com que o órgão se torne conspícuo o bastante para chamar ainda mais a atenção das presas, possivelmente atraindo-as – essa, sim, uma característica fundamental para a efetividade do engodo lingual.
É possível que, de certa forma, o comportamento de M. strigatus realmente represente um caso que justifique a fama que tanto persegue as serpentes ao longo da história humana, como símbolos de dissimulação. No entanto, o comportamento de engodo lingual é extremamente raro (observado em apenas cinco espécies no novos estudos que abordem esse comportamento em ambientes naturais ou controlados devem contribuir para importantes descobertas relacionadas à evolução de aspectos relacionados ao forrageamento de serpentes.
Revisão do texto por
M.Sc Arthur Diesel Abegg. E-mail: arthur_abegg@hotmail.com. CL
Projeto Dacnis, Ubatuba, SP, Brazil.
Referências
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